Igreja católica
Algumas Refutações
De vários pontos nos assinalam novas prédicas contra o Espiritismo, todas no mesmo espírito daquelas de que temos falado; e como não passam, quase sempre, de variantes do mesmo pensamento, em termos mais ou menos escolhidos, julgamos supérfluo fazer-lhes a análise. Limitar-nos-emos a destacar certas passagens, acompanhando-as de algumas reflexões.

“Meus irmãos, é um cristão que fala a cristãos e, nessa qualidade, temos o direito de nos admirarmos, vendo o Espiritismo crescer entre nós. O que é o Espiritismo, eu vos pergunto, senão um mosaico de horrores que só a loucura pode justificar?”

A isto nada temos a dizer, senão que todas as prédicas feitas nesta cidade foram incapazes de deter o crescimento do Espiritismo, como bem constata o orador; portanto, os argumentos que lhe opõem têm menos autoridade que os seus; e, se as prédicas emanam de Deus e o Espiritismo procede do diabo, é que este é mais poderoso que Deus. Nada mais brutal que um fato. Ora, a propagação do Espiritismo, em conseqüência mesma das prédicas,é um fato notório, e por certo as pessoas julgam que os argumentos por ele dados são mais convincentes que os dos adversários. É uma trama de horrores. Seja. Mas haveis de concordar que se esses Espíritos viessem abraçar todas as vossas idéias, em vez de demônios, deles faríeis santos; e, longe de condenar as evocações, vós as encorajaríeis.

“Nosso século não respeita mais nada; nem mesmo a cinza dos túmulos é poupada, pois insensatos ousam chamar os mortos para conversar com eles. Infelizmente é assim. Eis até onde chegou esse pretenso século das luzes: conversar com as almas do outro mundo.”

Conversar com os mortos não é privilégio deste século,já que a história de todos os povos comprova que isto tem ocorrido em todos os tempos. A única diferença é que hoje isto é feito em toda parte sem os acessórios supersticiosos com que outrora cercavam as evocações, e com um sentimento mais religioso e mais respeitoso. De duas uma: ou a coisa é possível, ou não é. Se não é, é uma crença ilusória, tal como acreditar na fatalidade da sextafeira,na influência do sal derramado. Não vemos, pois, que haja tantos horrores e que se falte com o respeito conversando com seres que já não pertencem a este mundo. Se os mortos vêm conversar conosco, só pode ser com a permissão de Deus, a menos que se pretenda que venham sem essa permissão, ou contra a sua vontade, o que implicaria que Deus não se importa com isso ou que os evocadores são mais poderosos que Deus. Mas notai as contradições: de um lado dizeis que só o diabo se comunica e, de outro, que se perturbam as cinzas dos mortos, chamando-os. Se é o diabo, não são os mortos; portanto, não são perturbados nem se lhes falta com o respeito. Se são os mortos, então não é o diabo. Seria preciso, ao menos, que vos pusésseis de acordo sobre este ponto capital. Admitindo que sejam os mortos, reconhecemos que haveria profanação em chamá-los levianamente, por razões fúteis,sobretudo para fazer disto profissão lucrativa. Condenamos todas essas coisas e não nos responsabilizamos pelos que se afastam dos princípios do Espiritismo sério. Não assumais responsabilidade pelos falsos devotos, que da religião só têm a máscara, que pregam o que não praticam ou que especulam com as coisas santas. Certamente evocações feitas em condições burlescas atribuídas a um eloqüente orador que citamos mais adiante, seriam um sacrilégio; mas, graças a Deus, não nos envolvemos com isso e não cremos que a do Sr. Viennois, igualmente referida adiante, esteja neste caso.

“Eu mesmo testemunhei estes fatos e ouvi pregar a moral, a caridade; é verdade. Mas sobre que se apóiam esta moral e esta caridade? Ah! sobre nada, porquanto não se pode chamar moral uma doutrina que nega as penas eternas.”

Se essa moral leva a fazer o bem sem o temor das penas eternas, é mais meritória ainda. Outrora se julgava impossível manter a disciplina na escola sem o medo da palmatória. Eram melhores os estudantes? Não; hoje ela não é mais usada e eles não são piores: ao contrário. Logo, o regime atual é preferível.

Julga-se a qualidade de um meio pelos seus efeitos. Aliás,a quem se dirige essa moral? Exatamente aos que não acreditam nas penas eternas, e a quem damos um freio, que aceitam, ao passo que não lhos dais, uma vez que não aceitam o vosso. Impedimos acreditem na danação absoluta aqueles a quem isto convém? Absolutamente. Ainda uma vez, não nos dirigimos aos que têm fé e aos quais esta basta, mas aos que não a têm ou duvidam. Preferiríeis que eles ficassem na incredulidade absoluta? Seria pouco caridoso. Temeis que vos tomem ovelhas? É que não tendes muita confiança no poder de vossos meios para retê-las; é que receais que elas sejam atraídas pela erva tenra do perdão e da misericórdia divina. Acreditais, então, que as que vacilam na incerteza preferirão as labaredas do inferno? Por outro lado, quem deve estar mais convencido das penas eternas, senão os que são alimentados no seio da Igreja? Ora, dizei por que essa perspectiva não deteve todos os escândalos, todas as atrocidades, todas as prevaricações contra as leis divinas e humanas, que pululam na História e se reproduzem incessantemente em nossos dias? São crimes ou não? Se, pois, os que fazem profissão desta crença não são tolhidos em suas ações, como querer que o sejam os que não crêem? Não; ao homem esclarecido de nossos dias é preciso outro freio: aquele que sua razão admite. Ora, a crença nas penas eternas, talvez útil em outras épocas, está superada; extingue-se dia a dia e, por mais que fizerdes, não dareis vida a um cadáver nem fareis reviver os usos, costumes e idéias da Idade Média. Se a Igreja Católica julga sua segurança comprometida pelo desaparecimento dessa crença, devemos lamentá-la por repousar sobre base tão frágil, porque, se algo a atormenta, este é o dogma das penas eternas.

“Assim, apelo à moralidade de todas as almas honestas; apelo aos magistrados, pois eles são responsáveis por todo o mal que semelhante heresia atrai sobre nossas cabeças.”

Não sabíamos que na França os magistrados fossem encarregados de instaurar processos contra as heresias, pois se entre eles há católicos, também há protestantes e judeus; assim, os próprios heréticos se incumbiriam de sua perseguição e condenação. E os há entre os funcionários da mais alta categoria.

“Sim, os espíritas – e não receio declarar aqui abertamente – não apenas são passíveis da polícia correcional e da Corte Imperial, mas, também – prestai bem atenção – do tribunal do júri, porque são falsários; assinam comunicações em nome de pessoas que certamente jamais as teriam assinado em vida, pessoas que hoje eles tanto fazem falar.”

Os espíritas estão realmente muito contentes, porque Confúcio, Sócrates, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon e outros não lhes podem mover processos por crimes de falsificação de escrita particular. Bem que eu sonho com isso: eles teriam uma tábua de salvação precisamente nos tribunais do júri a cuja jurisdição estão sujeitos, pois ali os jurados se pronunciam segundo a sua consciência. Ora, entre eles há também protestantes e judeus; há, até – coisa abominável! – filósofos, incrédulos, horríveis livres-pensadores que, à vista de nossas detestáveis leis modernas, se acham em toda parte. Assim, se nos acusam de fazer Santo Agostinho dizer algo de heterodoxo, sempre encontraremos jurados que nos absolvam. Ó perversidade do século! dizer que em nossos dias Voltaire, Diderot, Lutero, Calvino, João Huss, Ário teriam sido jurados por direito de nascimento, que poderiam ter sido juízes perfeitos, ministro da justiça e mesmo dos cultos! Vedeos,esses celerados infernais, a se pronunciarem sobre uma questão de heresia! Porque, para condenar a assinatura de Fénelon, posta abaixo de uma suposta comunicação herética, é preciso julgar a questão da ortodoxia; e quem será competente no júri?

“Entretanto, seria tão fácil interditar semelhante impiedade! O que se precisaria fazer? quase nada; mesmo sem lhes fazer a honra da capa do comissário, podeis colocar um sargento à entrada de cada grupo para dizer: não entreis. Pinto o mal e descrevo o remédio, apenas isto, pois eu os dispenso da Inquisição.”

Muito obrigado, mas não há grande mérito em oferecer aquilo que não se tem. Infelizmente, para vós, não podeis contar com a Inquisição, sem o que seria duvidoso que nos liberásseis dela. O que não dizeis aos magistrados, visando à interdição da entrada dos templos judeus e protestantes, onde se pregam publicamente dogmas que não são os vossos? Quanto aos espíritas, não têm templos nem sacerdotes, mas – o que para vós é a mesma coisa – grupos, à entrada dos quais basta pôr um sargento para que tudo fique dito. Realmente é muito simples. Mas esqueceis que os Espíritos ignoram qualquer proibição e entram em toda parte sem pedir permissão, mesmo em vossa casa, pois os tendes ao vosso lado, escutando-vos, sem que o suspeiteis e, ademais, vos falando ao ouvido. Trazei à memória as vossas lembranças e vereis que tivestes mais de uma manifestação, mesmo sem a haverdes buscado.

Pareceis ignorar uma coisa que é bom saibais. Os grupos espíritas não são absolutamente necessários; são simples reuniões onde se sentem felizes por encontrar-se pessoas que pensam do mesmo modo. E a prova disto é que hoje, na França, há mais de 600.000 espíritas, 99% dos quais não fazem parte de nenhum grupo e neles jamais puseram os pés; que eles não existem numa porção de cidades; que nem os grupos nem as sociedades abrem suas portas ao público para pregar suas doutrinas aos transeuntes; que o Espiritismo se prega por si mesmo e pela força das coisas, porque responde a uma necessidade da época; que as idéias espíritas estão no ar e são aspiradas por todos os poros da inteligência; que o contágio está no exemplo dos que são felizes com essas crenças e que são encontrados por toda parte, na sociedade,sem que se precise procurá-los nos grupos. Assim, não são os grupos que fazem a propaganda, pois não apelam ao primeiro que apareça; ela é feita pouco a pouco, de indivíduo a indivíduo. Se, portanto, admitíssemos a interdição de todas as reuniões, os espíritas ficariam livres para se reunirem em família, como já ocorre em milhares de lugares, sem que o Espiritismo nada sofra com isso; muito ao contrário, pois temos sempre condenado as grandes assembléias, que são mais prejudiciais que úteis; além disso, a intimidade é reconhecida como a condição mais favorável às manifestações. Interditaríeis as reuniões familiares? Colocaríeis um sargento à porta de um salão para vigiar o que se passa à lareira? Isto não se faz na Espanha, nem em Roma, onde há mais espíritas e médiuns do que pensais. Só faltava isso para aumentar ainda mais a importância do Espiritismo.

Admitamos agora a interdição legal dos grupos. Sabeis o que fariam esses espíritas que acusais de semear a desordem? Eles diriam: Respeitamos a lei; dura lex, sed lex. Vamos dar o exemplo,mostrando que, se pregamos a união, a paz e a concórdia, não é para nos transformarmos em promotores de desordens. As sociedades organizadas não são necessárias à existência do Espiritismo; não há entre elas nenhuma solidariedade material que possa ser quebrada por sua supressão. O que os Espíritos aí ensinam, igualmente ensinam numa conversa particular entre duas pessoas, porque o Espiritismo tem o incrível privilégio de ter o seu foco de ensino por toda parte. Seu sinal de ligação é o amor de Deus e do próximo e, para o pôr em prática, não há necessidade de reuniões oficiais, pois ele tanto se estende sobre os amigos quanto sobre os inimigos. Qualquer um pode dizer o mesmo; e mais de uma vez a autoridade não tem encontrado resistência onde esperava encontrar a maior submissão? Se os espíritas fossem pessoas tão turbulentas e tão pervertidas quanto pretendeis, por que os funcionários encarregados da manutenção da ordem têm menos trabalho nos centros onde eles constituem maioria? Um funcionário chegou a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas, sua repartição podia ser fechada. Por que há menos penas disciplinares entre os militares espíritas?

E, depois, não pensais que atualmente há espíritas em toda parte, de alto a baixo na escala social; que há reuniões e médiuns até em casa daqueles que invocais contra nós. Vede, pois,que o vosso meio é insuficiente; é preciso buscar outro. – Temos a condenação fulminante do púlpito. – Está bem; e vós a usais largamente. Mas não vedes que por toda parte onde lançam raios o número de espíritas aumenta? – Temos a censura da Igreja e a excomunhão. – É melhor; mas ainda uma vez bateis no vazio. Repetimos: o Espiritismo nem se dirige a vós nem aos que estão convosco; não os vai buscar e dizer-lhes: deixai a vossa religião e segui-me; sereis danados se não o fizerdes. Não; ele é mais tolerante que isso e deixa a cada um a liberdade de consciência. Como já dissemos, ele se dirige à massa inumerável dos incrédulos, aos que duvidam e aos indiferentes; estes não estão convosco e vossas censuras não os podem atingir. Eles vinham a vós, mas os repelíeis. Quanta inabilidade! Se alguns dos vossos os seguem, é que vossos argumentos não são bastante fortes para os reter e não é com rigor que o conseguireis. O Espiritismo agrada porque não se impõe e é aceito pela vontade e o livre-exame. Nisto ele é de nossa época. Agrada pela doçura, pelas consolações que prodigaliza nas adversidades, pela fé inabalável que dá no futuro, na bondade e na misericórdia de Deus. Além disso, ele se apóia em fatos patentes,materiais, irrecusáveis, que desafiam toda negação. Eis o segredo de sua tão rápida propagação. Que lhe opondes? Sempre a danação eterna, expediente ruim para os tempos que correm; depois a deturpação de suas doutrinas: vós o acusais de pregar o aborto, o adultério e todos os crimes. A quem pensais impor isto? Não aos espíritas, certamente. Aos que não o conhecem? Mas nesse número muitos querem saber o que é essa abominável doutrina; lêem, e vendo que ela diz exatamente o contrário do que lhe atribuem, vos deixam para a seguir. E isto sem que ele os vá procurar.

A posição, bem o sei, é embaraçosa: Se falamos contra o Espiritismo – dizeis – recrutamos-lhe partidários; se nos calamos, ele marcha sozinho. Que fazer então? Outrora se dizia: Deixai passar a justiça do rei; agora é preciso dizer: Deixemos passar a justiça de Deus.

(Continua no próximo número)
R.E. , maio de 1863, p. 199